Aqui esta vossa amiga ganhou este ano (pela segunda vez consecutiva, ah pois foi :-)) o prémio do conto infantil do concurso de contos da Convenção de Bookcrossing. E não o digo (só) para me gabar, mas porque hoje ele vem MESMO a propósito e por isso o transcrevo aqui. Ora adivinhem lá quem inspirou as personagens...
PRINCESAS DO SUL E DO NORTE
Era uma vez um reino distante e sossegado, onde a vida
avançava sem grandes sobressaltos (bem, havia alguns, mas os livros de história
esqueciam-se deles com frequência) e – segundo vinha nos tais livros - o povo,
os nobres, o clero e os comerciantes viviam em paz. Nos últimos tempos, também
havia outras profissões, como banqueiros e informáticos, mas os livros de história
esqueciam-se sempre deles.
Nesse reino, reinava – como é bom de ver – um rei. Era um rei
bom (menos mau, diziam algumas línguas maldosas), que fazia o que podia para
agradar a gregos e a troianos, que é como quem diz agradar aos povos do Norte e
do Sul e aos seus ministros e conselheiros que, ultimamente, lhe davam valentes
dores de cabeça. Mas enfim, puxando daqui, empurrando dacolá, o rei lá ia
conseguindo a harmonia desejada. É verdade que, às vezes, vinham nos jornais
umas histórias menos felizes, mas o rei fazia de conta que se esquecia delas.
Ora, o rei, além do reino, do povo, dos ministros, dos
nobres, do clero, dos comerciantes, dos banqueiros e dos informáticos, tinha
também duas filhas, as princesas Ângela e Patrícia. Os ministros tinham dito
que Ângela e Patrícia não eram nomes de princesas, mas a rainha – que
habitualmente se esquecia de tudo menos das suas aias e vestidos – dessa vez
fora inflexível. Desde pequena que dizia que, se tivesse filhas, se iriam
chamar Ângela, em homenagem a uma personagem de uma fotonovela da sua infância,
e Patrícia, o nome de uma amiga da escola primária. E Ângela e Patrícia
ficaram.
As princesas eram tão diferentes como duas gotas de água e
azeite. Ângela sabia sempre o que queria e a que horas e não ficava satisfeita
enquanto não tivesse todos os que a rodeavam a trabalhar para ela (e achava
sempre que os coitados trabalhavam pouco). Patrícia nem sempre sabia o que
queria, embora soubesse sempre o que não queria, e gostava de trabalhar, mas
também gostava de se esticar ao comprido na relva do palácio, depois de um belo
ensopado de borrego a – como ela dizia – “viver um bocadinho” (Ângela nunca
almoçava, comia uma sanduíche de queijo enquanto vigiava as suas aias, para ter
a certeza de que todas cumpriam – à hora certa – as ordens que lhes dava).
As duas irmãs cresceram fortes e saudáveis, mas cada vez mais
diferentes. O rei, que se preocupava com estas duas filhas com personalidades
tão opostas, e percebendo que não seriam capazes de partilhar o mesmo reino, casou-as
com dois príncipes bons e generosos, mandou fazer obras em dois dos seus
palácios e deu a cada princesa uma parte do seu reino: a Patrícia, as terras do
Norte e a Ângela as terras do Sul. Pensou o rei, ajudado pelos seus ministros e
conselheiros, que, sendo Ângela tão trabalhadora e pontual, seria uma boa
rainha para os povos do Sul, já que estes eram conhecidos por serem preguiçosos
e se atrasarem sempre para tudo. E, de facto, assim foi. De igual forma, pensou
que aos povos do Norte, sempre cumpridores, pontuais e pouco sorridentes,
conviria uma rainha que soubesse apreciar as coisas boas da vida com um sorriso
nos lábios. E assim foi.
O problema é que Ângela nunca estava contente. Queria sempre
mais. Mais impostos, mais súbditos, mais terras, mais palácios. E o pai,
julgando fazer-lhe bem, dava-lhe tudo o que ela pedia.
Até certo dia.
Nesse dia, havia uma festa de inauguração do mais recente
palácio de Ângela (o maior e mais luxuoso que se tinha visto por aquelas
paragens). A princesa vagueava de sala em sala, procurando (e achando) defeitos
em tudo – era a obra que estava atrasada, era o chão que não estava como ela
queria, era a casa de banho… quando chegou à casa de banho, Ângela deu um
grito:
- NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃO!
- O que foi, filha? – perguntou o rei, julgando que lhe
estava a dar qualquer coisinha má.
- Não estão cá as torneiras que eu escolhi – gemia e gritava
Ângela – e eu quero TUDO, TUDO, TUDO como eu mando.
Foi nessa altura que o rei (um homem tão calmo que já ninguém
se lembrava da última vez que se tinha exaltado) olhou para a filha e a viu
feia, tão feia, tão feia, à luz de um esplendoroso sol de fim de tarde, que
agarrou a barba com toda a força (o ministro, que estava ao seu lado, diria
mais tarde que pensou que ele a ia arrancar), encheu o peito de ar e gritou com
voz de trovão:
- ACABOU! Quem tudo, tudo, tudo quer – já dizia a minha avó,
a rainha Pulquéria Belarmina – tudo, tudo, tudo perde. Ângela, vai
imediatamente para o palácio do Norte, onde vive a tua irmã, e diz-lhe que
venha ela tomar conta das terras do Sul! O ministro ainda abriu a boca para
dizer que talvez não fosse uma decisão prudente, mas lembrou-se a tempo de que
um rei de cabeça perdida pode dar ordens imprevisíveis e, não fosse ele
mandá-lo também para as terras frias, tristes e pontuais do Norte, fechou-a
mesmo a tempo.
E foi assim que a princesa Patrícia, rumou com grande alegria
às terras do Sul. Embora, como seria de esperar nela, se tivesse habituado às
brumas e à pontualidade nórdicas com um sorriso, percebeu, assim que chegou e
foi recebida com um belo ensopado de borrego, que estava fartinha de almoçar
sanduíches de queijo (mesmo sendo servidas à hora certa) e abraçou o seu novo
reino com o entusiasmo que sempre punha nas coisas boas da vida.
Quanto à princesa Ângela, os livros de história não contam
exactamente o que lhe aconteceu. Mas os mais velhos falam ainda hoje de uma
princesa que desenvolveu muito o reino do Norte, pondo todos a trabalhar com
afinco, mas que todos os dias, exactamente à uma e trinta e cinco da tarde
(depois de almoçar uma sanduíche de queijo), se fechava nos seus aposentos a chorar
com saudades do cheiro a sardinhas assadas servidas à beira das praias do Sul.
Chorava, chorava, chorava. Mas só até à uma e quarenta e dois. À um quarto para
as duas recomeçava a reinar.
FIM