Monday, September 27, 2010

E tu, distigues o céu do inferno?

Hoje é dia de vir trabalhar de bicicleta. Eu sempre andei de bicicleta fora de Lisboa, em momentos de liberdade e vento na cara, e uma coisa que fazia muitas vezes era cantar enquanto pedalava. A prova de que já me estou a habituar a circular pela cidade, é que já me apanho a trautear, normalmente para os lados do Jardim do Campo Grande, que deve ser quando meu subconsciente acha que está no campo.
Hoje de manhã, vinha a relembrar a letra do Wish you were here, dos Pink Floyd:
So, so you think you can tell
heaven from hell,
blue skies from pain.
Can you tell a green field
from a cold steel rail?
A smile from a veil?
Do you think you can tell?
Did they get you to trade
your heroes for ghosts?
Hot ashes for trees?
Hot air for a cool breeze?
Cold comfort for change?
Did you exchange
a walk on part in a war
for a lead role in a cage?
E, mesmo antes de chegar ao refrão, dei comigo a (re)pensar o significado das palavras, uma coisa que às vezes acontece com frases que sabemos de cor há tantos anos e que subitamente ganham novos entendimentos.
E, enquanto punha o cadeado na bicla, fiz ali - num instante - uma introspecção sobre esta metade de vida que já levo. Gosto de acreditar que não perdi rumo à diferença entre o que interessa e não interessa e que ainda não me acomodei. Só gostava era de conseguir, mais e mais vezes, estender a consciência do que se quer fazer às acções que se praticam. Mas, enfim, para manhã de segunda-feira não foi mau...

Sunday, September 26, 2010

Afinal, para que servem os blogues?

Em 1997, eu trabalhava na Hemeroteca Municipal de Lisboa. Para quem não sabe o que é uma hemeroteca, ou para aqueles que lhe chamavam "aquela teca onde tu trabalhas", fica a nota de que se trata de uma biblioteca dedicada a periódicos, ou seja jornais e revistas.

No trabalho que fazia, passaram-me pelas mãos muitas coisas engraçadas. De algumas tomei nota. Na sexta-feira, estava a arrumar papéis, daqueles que já vieram de casa dos meus pais, e descobri alguns dessa altura. Já os tinha deitado para a reciclagem, quando pensei: "Espera, vou mas é por no blogue!"

Poderia dizer que são textos preciosos e que de outra forma se iriam perder. Ou que são tão interessantes que merecem vir para a blogosfera. Mas, na realidade, pô-los aqui é uma forma de eu não ter pena de os mandar para o lixo. Mantenho a linha sentimental que me une a eles e arranjo mais espaço cá em casa.

Cá fica, então, uma dessas maravilhas. Da Gazeta dos Caminhos de Ferro, ano 15, n.º 357, pág. 327, 1 de Novembro de 1902:

"Recebemos a seguinte carta:

Sr. Redactor
Banco do Conde Barão, 31

Meu caro senhor: Eu acredito nos jornais como num breviário.
Ora a semana passada li nas «Novidades e outras folhas» que desde o dia 17 havia carros eléctricos de vintém para o Intendente. Nesse dia, tendo que ir aos Anjos tratar d'um negócio de certa urgência, disse comigo - calha bem; vou nos tais carros novos, em que poupo 10 reis. E vim para este largo esperar. Eram oito da manhã.

Esperei, esperei, e os carros não apareciam. O dia foi-se adiantando, a fome apertava e eu não queria sair daqui para não perder o carro. Resolvi-me a mandar a casa buscar o almoço, que devorei aqui, sobre o banco, esperando sempre ver surgir o cumprimento da promessa da companhia Carris.

E eles sem aparecerem. Cá me conservei, chegou a noite, e mandei buscar o jantar, sempre de olho à mira para os lados da Esperança. Nada!

Fez-se noite, noite amena, de atmosfera limpa e temperatura agradável. E pela noite talvez eles comecem, dizia eu; e esperei mais até que adormeci.

Acordei ao despontar do dia ao toque da primeira badalada d'um eléctrico, e olhei-o sobressaltado. Era para o Intendente.

Perguntei se era dos especiais a vintém e o condutor respondeu-me delicadamente que fosse para o inferno e chamou-me qualquer coisa.

Resolvi então esperar, sempre confiado em ver aparecer o prometido carro, seguindo o mesmo processo da véspera, passou-se todo o dia e a noite, e ontem, e hoje cá estou ainda.

Mas senhor redactor, os dias vão passando e o que não passa é o maldito eléctrico de vintém! E eu não posso mais; por isso lhe peço me diga se a companhia engoliu a promessa, ou se fui eu que engoli a peta. Ou finalmente em dia começa o tal novo serviço, porque amanhã é sábado e eu preciso de ir a casa mudar de roupa, o que não posso fazer aqui. E tenho de is aos Anjos onde continua a esperar-me o negócio de certa urgência.

O que lhe posso assegurar é que eles ainda não passaram e espero que V. dê todo o crédito a esta minha afirmação, porque lhe escrevo d'um banco, que me tem servido de sofá, mesa de jantar e leito há cinco dias.

Seu constante leitor,
Francisco Ingénuo

Não sabendo que responder ao nosso estimável e paciente leitor, remetemos o seu pedido às «Novidades» que foi o primeiro jornal que deu a notícia. Este nosso estimado colega talvez lhe responda."

Thursday, September 16, 2010

Gentes e lugares - Maria da Conceição, em Sobreda do Bouro


Chegámos à casa que tínhamos marcado ao fim da tarde. Não foi fácil encontrar o socalco minhoto onde a quinta ficava e quem nos deu a indicação definitiva foi um homem num tractor, que tinha acabado de lá deixar a mulher, que - segundo nos disse - ali trabalhava.

Caminho encontrado, quem nos recebeu foi a D. Conceição ("Conceição ou Maria chamem-me o nome que quiserem, eles são os dois meus"). A simpatia que transmitiu foi tão contagiante que, de imediato, nos rendemos à sua pronúncia minhota, carregada de expressões para nós diferentes e até pitorescas, às suas iguarias culinárias (o leite creme que, segundo disse, lhe saiu mal, estava de chorar por mais) e à franqueza com que se pôs, e à casa, à disposição.

Mostrou-nos a casa, deu-nos ordem para a explorarmos à nossa vontade e foi tão cordial e compreensiva com os miúdos que eles se comportaram maravilhosamente e conversaram à volta dos rojões e das batatas fritas como gente graúda.

Na manhã seguinte, D. Conceição foi buscar dois póneis e ajudou os miúdos a montar, sempre sorridente, disponível e a fugir da máquina fotográfica.

Sem dúvida que, de tudo de bom que tem a Quinta do Sorilhal, o melhor é a presença alegre e afectuosa de D. Conceição.