Em 1997, eu trabalhava na Hemeroteca Municipal de Lisboa. Para quem não sabe o que é uma hemeroteca, ou para aqueles que lhe chamavam "aquela teca onde tu trabalhas", fica a nota de que se trata de uma biblioteca dedicada a periódicos, ou seja jornais e revistas.
No trabalho que fazia, passaram-me pelas mãos muitas coisas engraçadas. De algumas tomei nota. Na sexta-feira, estava a arrumar papéis, daqueles que já vieram de casa dos meus pais, e descobri alguns dessa altura. Já os tinha deitado para a reciclagem, quando pensei: "Espera, vou mas é por no blogue!"
Poderia dizer que são textos preciosos e que de outra forma se iriam perder. Ou que são tão interessantes que merecem vir para a blogosfera. Mas, na realidade, pô-los aqui é uma forma de eu não ter pena de os mandar para o lixo. Mantenho a linha sentimental que me une a eles e arranjo mais espaço cá em casa.
Cá fica, então, uma dessas maravilhas. Da Gazeta dos Caminhos de Ferro, ano 15, n.º 357, pág. 327, 1 de Novembro de 1902:
"Recebemos a seguinte carta:
Sr. Redactor
Banco do Conde Barão, 31
Meu caro senhor: Eu acredito nos jornais como num breviário.
Ora a semana passada li nas «Novidades e outras folhas» que desde o dia 17 havia carros eléctricos de vintém para o Intendente. Nesse dia, tendo que ir aos Anjos tratar d'um negócio de certa urgência, disse comigo - calha bem; vou nos tais carros novos, em que poupo 10 reis. E vim para este largo esperar. Eram oito da manhã.
Esperei, esperei, e os carros não apareciam. O dia foi-se adiantando, a fome apertava e eu não queria sair daqui para não perder o carro. Resolvi-me a mandar a casa buscar o almoço, que devorei aqui, sobre o banco, esperando sempre ver surgir o cumprimento da promessa da companhia Carris.
E eles sem aparecerem. Cá me conservei, chegou a noite, e mandei buscar o jantar, sempre de olho à mira para os lados da Esperança. Nada!
Fez-se noite, noite amena, de atmosfera limpa e temperatura agradável. E pela noite talvez eles comecem, dizia eu; e esperei mais até que adormeci.
Acordei ao despontar do dia ao toque da primeira badalada d'um eléctrico, e olhei-o sobressaltado. Era para o Intendente.
Perguntei se era dos especiais a vintém e o condutor respondeu-me delicadamente que fosse para o inferno e chamou-me qualquer coisa.
Resolvi então esperar, sempre confiado em ver aparecer o prometido carro, seguindo o mesmo processo da véspera, passou-se todo o dia e a noite, e ontem, e hoje cá estou ainda.
Mas senhor redactor, os dias vão passando e o que não passa é o maldito eléctrico de vintém! E eu não posso mais; por isso lhe peço me diga se a companhia engoliu a promessa, ou se fui eu que engoli a peta. Ou finalmente em dia começa o tal novo serviço, porque amanhã é sábado e eu preciso de ir a casa mudar de roupa, o que não posso fazer aqui. E tenho de is aos Anjos onde continua a esperar-me o negócio de certa urgência.
O que lhe posso assegurar é que eles ainda não passaram e espero que V. dê todo o crédito a esta minha afirmação, porque lhe escrevo d'um banco, que me tem servido de sofá, mesa de jantar e leito há cinco dias.
Seu constante leitor,
Francisco Ingénuo
Não sabendo que responder ao nosso estimável e paciente leitor, remetemos o seu pedido às «Novidades» que foi o primeiro jornal que deu a notícia. Este nosso estimado colega talvez lhe responda."
No trabalho que fazia, passaram-me pelas mãos muitas coisas engraçadas. De algumas tomei nota. Na sexta-feira, estava a arrumar papéis, daqueles que já vieram de casa dos meus pais, e descobri alguns dessa altura. Já os tinha deitado para a reciclagem, quando pensei: "Espera, vou mas é por no blogue!"
Poderia dizer que são textos preciosos e que de outra forma se iriam perder. Ou que são tão interessantes que merecem vir para a blogosfera. Mas, na realidade, pô-los aqui é uma forma de eu não ter pena de os mandar para o lixo. Mantenho a linha sentimental que me une a eles e arranjo mais espaço cá em casa.
Cá fica, então, uma dessas maravilhas. Da Gazeta dos Caminhos de Ferro, ano 15, n.º 357, pág. 327, 1 de Novembro de 1902:
"Recebemos a seguinte carta:
Sr. Redactor
Banco do Conde Barão, 31
Meu caro senhor: Eu acredito nos jornais como num breviário.
Ora a semana passada li nas «Novidades e outras folhas» que desde o dia 17 havia carros eléctricos de vintém para o Intendente. Nesse dia, tendo que ir aos Anjos tratar d'um negócio de certa urgência, disse comigo - calha bem; vou nos tais carros novos, em que poupo 10 reis. E vim para este largo esperar. Eram oito da manhã.
Esperei, esperei, e os carros não apareciam. O dia foi-se adiantando, a fome apertava e eu não queria sair daqui para não perder o carro. Resolvi-me a mandar a casa buscar o almoço, que devorei aqui, sobre o banco, esperando sempre ver surgir o cumprimento da promessa da companhia Carris.
E eles sem aparecerem. Cá me conservei, chegou a noite, e mandei buscar o jantar, sempre de olho à mira para os lados da Esperança. Nada!
Fez-se noite, noite amena, de atmosfera limpa e temperatura agradável. E pela noite talvez eles comecem, dizia eu; e esperei mais até que adormeci.
Acordei ao despontar do dia ao toque da primeira badalada d'um eléctrico, e olhei-o sobressaltado. Era para o Intendente.
Perguntei se era dos especiais a vintém e o condutor respondeu-me delicadamente que fosse para o inferno e chamou-me qualquer coisa.
Resolvi então esperar, sempre confiado em ver aparecer o prometido carro, seguindo o mesmo processo da véspera, passou-se todo o dia e a noite, e ontem, e hoje cá estou ainda.
Mas senhor redactor, os dias vão passando e o que não passa é o maldito eléctrico de vintém! E eu não posso mais; por isso lhe peço me diga se a companhia engoliu a promessa, ou se fui eu que engoli a peta. Ou finalmente em dia começa o tal novo serviço, porque amanhã é sábado e eu preciso de ir a casa mudar de roupa, o que não posso fazer aqui. E tenho de is aos Anjos onde continua a esperar-me o negócio de certa urgência.
O que lhe posso assegurar é que eles ainda não passaram e espero que V. dê todo o crédito a esta minha afirmação, porque lhe escrevo d'um banco, que me tem servido de sofá, mesa de jantar e leito há cinco dias.
Seu constante leitor,
Francisco Ingénuo
Não sabendo que responder ao nosso estimável e paciente leitor, remetemos o seu pedido às «Novidades» que foi o primeiro jornal que deu a notícia. Este nosso estimado colega talvez lhe responda."
1 comment:
Gostei tanto! Ainda bem que o copiaste para o papel e depois para aqui. Bendita teca onde trabalhaste! ;)
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