Sunday, January 4, 2009

Planisfério pessoal, de Gonçalo Cadilhe

Tal como os livros anteriores do Gonçalo Cadilhe que tinha lido (A lua pode esperar e, sobretudo, África acima) este livro causou-me uma impressão muito forte e vários tipos de sentimentos.

Tal como os anteriores, li-o de uma assentada, perdendo horas de sono, o que quer dizer que dei a volta ao mundo numa noite (o que talvez não agradasse muito ao autor, assim como facto de o ter lido através do bookcrossing, que ele - que não consegue cortar o cordão umbilical com os seus livros - considera "uma promiscuidade irresponsável").

Comecei a gostar do livro ainda antes de o ler, porque acho o título muito bonito. A palavra pessoal (como no programa da TSF Pessoal e Transmissível e não como em "Vou beber um copo ao Bairro Alto, com o pessoal") lembra-me que todos somos únicos, mas não necessariamente individualistas. Depois, entrei na vertigem de uma volta ao mundo que o autor traçou pelos caminhos menos convencionais, atravessando alguns dos países mais pobres e mais miseráveis do mundo (porque ser pobre e ser miserável não é bem a mesma coisa, e o fundo da escada é quando as duas coisas se fundem) não procurando necessariamente os pontos turísticos, mas sem fugir deliberadamente deles.

E aqui dividem-se a minhas emoções. Se a aventura me seduz (consigo mesmo, por vezes, encontrar alguns paralelismos com o meu próprio planisfério pessoal, que, não tendo qualquer comparação com o do Gonçalo Cadilhe, tem alguns momentos interessantes, como uma viagem nocturna de comboio entre Moscovo e São Petesburgo), deprime-me sempre imaginar aldeias em que as crianças fabricam armas e cultivam ópio depois da escola.

Roubar dignidade à infância e à velhice são infâmias que não devíamos permitir (penso nisto enquanto a R. se pendura no meu pescoço durante um momento mais assustador d'"A Bela e o Mostro", que longe que está o mundo daqui de casa).

Mas por isso, também, gosto dos livros de Gonçalo Cadilhe e gostava que ele escrevesse mesmo livros, e não apenas publicações das crónicas semanais, que deixam tanto por dizer; gosto porque ele vai ao encontro de pessoas que semeiam projectos de esperança, como a escola informal na Nicarágua ou o hotel que alimenta crianças, no Peru.

E tudo isto está tão longe e , ao mesmo tempo, tão perto das multidões de turistas que coleccionam carimbos de passaporte, experiências pré-fabricada, a ver por ver, sem ver.


Recordei-me do choque que senti ao chegar ao Mont Saint-Michel ou ao Sacré Coeur, onde hordas de turistas de acotovelavam e do prazer que era estar na Fraguinha, ou na pousada de juventude no ponto onde a Noruega, a Finlândia e a Suécia se encontram e, realmente, a escolha é fácil (embora todas sejam experiências ricas).

E, já agora, Gonçalo Cadilhe, eu acho que o tal trekking, ou wanderung, se pode muito bem dizer em português "caminhar", que é um verbo que por cá anda há bastante tempo. A forma de o fazer é diferente, realmente, porque - entre nós - só há pouco tempo caminhar é associado ao lazer e à saúde. Até há uns anos atrás, a maior parte dos portugueses não fazia outra coisa: caminhava para o trabalho (a muitos quilómetros, por vezes), para a escola, para casa. E caminhar era sinónimo de pobreza, de não ter outro meio de transporte, que poucos tinham (e esses não caminhavam, passeavam, no jardim, ao Domingo). Agora, que - para o bem e para o mal - o transporte individual se democratizou, já podemos voltar a caminhar tranquilos.

Ena, onde eu cheguei neste planisfério...

No comments: